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Queda Livre


Não sou um especialista em educação, mas tenho a meu favor o fato de que sempre fui um péssimo aluno. Nossa confusão mental, se não é causa exclusiva da educação, encontra nela uma de suas maiores responsáveis, talvez a maior. Comecei minha vida letiva (que vai de meados dos anos 80 até começo dos 90) num ótimo colégio particular, fui descendo a ladeira e acabei concluindo o ensino médio em um colégio público padrão. Vi de perto, por causa dos anos extras que fui forçado a passar na escola, como funciona esse sistema de criação de gênios incompreendidos, chapeleiros malucos, histéricos e afins, que faz com que todo brasileiro acorde, estufe o peito, coma seu pão de 7 grãos com café preto e não tenha a menor ideia do que veio fazer nesse mundo, muito embora se considere o único sujeito lúcido em meio ao caos diário.

Quem estudou na minha época, início dos anos 90, em colégios estaduais ou municipais, deve se lembrar, que passávamos boa parte do ano letivo em todo tipo de tarefas extracurriculares: jogando bola, truco, fumando maconha, arremessando cadernos dos colegas pela janela, escondendo mochilas, entre outras atividades, devido as constantes ausências de professores, as greves recorrentes e, quando os tínhamos em sala, a excelência do serviço prestado deixava muito a desejar, se é que alguma vez foi desejado. Eram comuns trocas de professores durante um ano letivo, o que tornava qualquer processo doutrinal falho. Ou seja, nós que estudamos em colégios públicos escapamos um tanto ilesos da influência ideológica. O que não quer dizer que não a recebíamos de outras formas: jornalismo e show business faziam e ainda fazem muito mais a cabeça dos jovens do que a escola.

Nas escolas particulares a coisa era diferente. Essas, sob o pretexto da alta qualidade dos seus programas pedagógicos convenciam os pais que, na esperança de que estas preparariam sua preciosa prole para entrar nas “melhores universidades” do país, pagavam um preço altíssimo. Ainda hoje sinto calafrios quando alguém me conta que seu filho estuda numa escola “diferenciada” torrando nessa ilusão uma verdadeira fortuna por mês. Confiando nessa pedagogia diferenciada nossos pais nos largavam na escola pela manhã, seguros de que estávamos em boas mãos, e iam tratar de correr atrás do prejuízo, trabalhando avidamente para isso.

Lá, ideólogos de todo tipo agiam livremente, espalhando seu rancor contra tudo e todos, muitas vezes exibindo verdadeiro desprezo pelo que consideravam ser burguesinhos mimados. No período que passei na escola privada não me recordo de um professor que não fosse petista e que não nos enfiasse goela abaixo sua visão de submundo ou sua sub-visão de mundo. Lembro-me dos horrores que diziam sobre a nossa ditadura, dos horrores da inquisição, mas não tenho registrado na memória, que não é tão ruim, qualquer comentário sobre as milhões de mortes dos regimes comunistas, nem sequer críticas moderadas aos seus métodos políticos. Um deles, acho que era um professor de física, gostava de dar suas aulas com uma bela camiseta vermelha estampando uma foice e um martelo.

Nomes como Paulo Freire, Karl Marx, Lenin, Stalin, Che eram tratados com enorme deferência, ao passo que nomes como Jesus, Reagan ou Thatcher eram recebidos com esgares de ironia e de desprezo. Nossos iluminados professores, do alto dos seus pedestais, nos mostravam como nossos pais eram cruéis nessa lógica vil do mercado e que, se fôssemos como eles, jamais transformaríamos o mundo a nossa volta. Tudo isso passado com aquele tom de voz manso, cheio de fingida bondade, como se o que dissessem fosse uma verdade evidente em si mesma. Eu, que sempre me equilibrava entre notas abaixo da média e abaixo de zero, não captava esse preparo pouco sutil de parcialidade ideológica. Mas lembro-me de amigos que imitavam os trejeitos do professor, mudando o tom da voz, acrescentando todo um gestual de afetação superior, passando a olhar a si mesmos, muito antes de terem construído uma consciência sólida, como gurus que iluminavam as verdades ocultas, como aqueles que edificariam o futuro cintilante do mundo.

Para um jovem moderno que teve boa parte da sua educação primária moldada pela televisão, pois a necessidade de ganhar a vida impõe a pais e mães longas jornadas de trabalho, nada é mais cativante do que descobrir que o mundo lá fora não é tão limitado como esses mesmos pais, ocupados com toda sorte de necessidades financeiras, o fizeram acreditar. Ter que desperdiçar a vida no trabalho metódico, tentando manter uma família, não parece nada interessante para alguém que ainda está tateando a vida. Encontrar uma causa que aflore suas necessidades de situação e atuação no mundo é muito sedutor. Além dos professores, os artistas são também são disseminadores dessa visão parcial da história, e acatar bovinamente seus estilos de ser é, para o jovem, questão de autopreservação.

Desde minha gloriosa época escolar até os dias de hoje não me parece que a escola tenha evoluído muito, não obstante a enorme quantidade de especialistas que ganharam uma dinheirama criando métodos de ensino, os mais inúteis possíveis. A escola que deveria dilatar os horizontes nada faz senão estreitar as percepções. A questão me parece, é de lógica elementar. Trinta anos dessa educação resultaram nesse quadro de degradação moral e psicológica; dificultando a transição do jovem a vida adulta, na escola particular; deixando-os em inferioridade quando precisam disputar um emprego, ou uma vaga na universidade, na escola pública; trinta anos de deformação das mentes. Que uma mudança de rumo deva acontecer é mais do que urgente. Caso contrário continuaremos a acreditar apenas em nossas percepções primárias, em nossos impulsos emocionais, em nossos instintos animalescos. Tudo isso misturado a uma falsa ideia de consciência superior que torna o brasileiro o homem eleito, o escolhido, ainda que governados por indivíduos que os desprezam, que nada fazem a não ser atravancar o seu caminho, que não parecem muito interessados em tirá-los do atoleiro.


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